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A Jornada de Uli - Capítulo 1

  • Foto do escritor: Gabriel Gusmão
    Gabriel Gusmão
  • 21 de mar.
  • 21 min de leitura

Mulher caminhando em meio a casas humildes durante a noite

Nos arredores da aldeia de Stanmur, entre bosques sussurrantes e colinas enevoadas, vive Uli. Desde pequena, ela aprendeu a caminhar sozinha, a suportar os olhares frios e os sussurros que a seguiam como sombras. Filha de Sana, uma mulher que muitos chamam de bruxa, Uli cresceu entre o medo e a desconfiança dos aldeões. Mas era ali, nas trilhas escondidas, nas colinas litorâneas e entre as raízes retorcidas das árvores, que seu coração batia em liberdade, longe das correntes invisíveis que a mantinham à margem.

Quando uma maldição cai sobre Stanmur, lançada pelo enigmático duende Balder, os aldeões mergulham em um sono profundo e sombrio, presos em um feitiço do qual ninguém pode escapar. Apenas Uli, imune ao encantamento, permanece de pé diante do silêncio assombroso que toma a aldeia. Para salvar sua mãe e seu povo, mesmo aqueles que sempre a rejeitaram, ela precisará partir em uma jornada perigosa, guiada por segredos há muito esquecidos e por forças que espreitam além do véu do mundo comum.

Entre antigos pactos, criaturas misteriosas e desafios que testam sua coragem, Uli descobrirá que a verdadeira magia não está apenas nos feitiços ou encantamentos, mas na força que se esconde dentro de si. Sua jornada será mais do que uma busca por salvação – será o despertar de algo muito maior, algo que pode mudar seu destino e o de todos ao seu redor.

História nascida em algum momento do ano de 2019.




A lua erguera-se cedo naquela noite. Lá estava ela agora, redonda e brilhante, reinando soberana entre as estrelas de um céu limpo.


— A vigia dos caminhos noturnos — Sana dedicou a ela uma prece silenciosa.

Desceu depressa a encosta da colina, mas parou ao chegar à baixada. Ao longe, um lobo uivou. Seus companheiros responderam imediatamente, de meia dúzia de direções diferentes. Os lobos estavam cada vez mais ousados; o último inverno fora rigoroso e afugentara a maior parte dos animais dos bosques e das colinas, de modo que quase não houvera presas ao longo dos meses mais frios do ano. E agora eles sentem que chegou a hora de voltar a comer, Sana olhou em volta, apreensiva, seu hálito se tornando vapor no ar frio da noite. Ela voltou a caminhar depressa e rapidamente venceu a distância que separava a aldeia das colinas.


Stanmur estava silenciosa, e as pequenas casas de pedra que se amontoavam ao redor da rua principal estavam fechadas. Eles se recolheram cedo, pensou Sana. Uma lufada de vento veio uivando pela rua e a atingiu em cheio. Ela deu dois passos para trás, para manter o equilíbrio. O vento soprava inclemente desde o romper da aurora, trazendo do mar o cheiro de sal e de sangue. Sana estreitou os olhos e, sob a luz do luar, divisou o pobre e mirrado cais que ficava ao fim da rua. Era ali que os pescadores de Stanmur atracavam seus barcos. Mais além, as águas da baía se agitavam e se encrespavam, ondas escuras se amontoando umas sobre as outras. Mesmo aqui, na pequena baía protegida, o mar está agitado esta noite. Sana apertou o alforje contra o peito, e os pequenos frascos de vidro que carregava retiniram ao baterem uns contra os outros. Não via com bons olhos a ideia de sair de casa tão tarde da noite, deixando Uli sozinha, e não teria feito isso se tivesse escolha, mas aquele tinha sido um dia cheio e ela se atrasara.


Seguindo pela rua principal, ela avistou um edifício de dois andares com uma tabuleta na fachada, oscilando ao sabor do vento, e uma lanterna presa junto à porta. Era o Barril de Carvalho, a única estalagem num raio de muitas léguas, o centro da vida de Stanmur, onde os habitantes e os visitantes ocasionais se reuniam para beber, comer e trocar notícias da terra e do mar. Naquela noite, porém, Sana não se importava com as notícias. Tudo o que queria era vender alguns tônicos e voltar para casa, onde Uli estaria esperando. Ela segurou firme o alforje e foi rumo ao Barril de Carvalho.


— É a bruxa quem vem aí? — disse alguém. Sana se assustou e demorou um pouco para perceber que havia um homem sentado no chão, junto à parede da estalagem, imóvel.


— Tovald, seu tolo! — ela esbravejou. — Está aqui fora, com os pés metidos na lama, só para assustar quem vai entrar?


— Ah, não, não. Estava bebendo, mas o velho Guda me expulsou — fez uma careta zombeteira: — “Já bebeu demais por uma noite seu trambiqueiro”, foi o que ele disse.


— E eu estou tentada a concordar! Vá para casa — disse Sana.


Tovald resmungou e se contorceu, procurando uma posição mais confortável.


— Talvez eu devesse… você também. Olhe lá, no horizonte! — Tovald apontou para o fim da rua, por sobre as águas revoltas e escuras da baía, e, ao olhar para lá, Sana viu uma imensa estrela de brilho amarelo que quase tocava a água, nos confins do oceano. — O Olho do Afogado está bem baixo no céu. Daqui a pouco vai mergulhar. Nunca é bom sinal.


— Ora, pare com isso! Você precisa sair dessa lama e…


— Não gaste a sua boa-vontade comigo, bruxa — cuspiu Tovald. — Não quer acreditar? Não acredite, mas vá entrando e me deixe ficar quieto.


Sana balançou a cabeça, descrente, empurrou a porta e entrou na estalagem. Imediatamente sentiu as bochechas corarem; o ar dentro da sala comum estava muito mais quente do que o da noite, lá fora. A lareira estava acesa e havia braseiros e lanternas posicionados nos cantos, enchendo o local com uma bem-vinda luz amarelada. Levou alguns instantes para que os olhos de Sana se acostumassem com a luminosidade, mas então ela conseguiu ver que a sala estava cheia. Homens e mulheres espalhavam-se por várias mesas, comendo, bebendo e falando alto. Cães corriam por todos os lados, lutando por ossos e sobras. Junto da lareira, um homem dedilhava um alaúde, batendo os pés no chão para marcar o compasso, e outros dois tocavam flautas. Pescadores bêbados saltitavam ao redor deles, tentando seguir o ritmo. Num dos cantos havia um punhado de forasteiros e, não muito longe deles, alguns marinheiros, homens duros, com rostos queimados e olhos ferozes. Ao verem Sana, parada na soleira da porta, as pessoas baixaram a voz, os bêbados pararam de cantar e até mesmo o trovador desafinou e deixou a agradável melodia morrer com um acorde agudo que mais lembrava o guincho de um gato no cio. Sana sentiu o peso do silêncio e de seus olhares enviesados, cheios de dúvida e medo. Eles a temiam e, como consequência, a odiavam, era evidente. Mas ela era uma mulher feita, tinha visto vários invernos e não se deixava abalar tão facilmente, então limpou a garganta e disse com voz clara:


— Estou trazendo alguns tônicos! Acabei de cozinhá-los esta tarde, estão bem frescos.


O silêncio se manteve. Ela pegou alguns frascos na bolsa e os exibiu.


— Estes são muito potentes, feitos com as últimas flores de Isvindrella da estação — disse Sana. — Podem restaurar a força e o vigor de um homem que volta do mar depois de muitos dias de pescaria.


Silêncio. Silêncio. O Silêncio parecia insuperável, até que alguém se levantou de uma mesa perto da lareira, alguém com um rosto bem menos hostil.


— Eu vou querer! — disse Jorud, esposo de Iselin, uma de suas únicas amigas na vila.

Sana respirou aliviada; era com a venda dos tônicos que dava de comer a Uli e, ocasionalmente, encomendava alguma peça de roupa, quando as velhas se rasgavam ou ficavam pequenas demais. Foi até Jorud, desviando-se de algumas mesas apinhadas de gente desconfiada, e entregou a ele três frascos de tônico de Isvindrella. O velho pescador deu um sorriso meio banguela e fez tilintar para as mãos de Sana umas poucas moedas de cobre, abanando a cabeça em seguida, num gesto de agradecimento.


— Mais alguém? — Sana quis saber.


— Não! Suma daqui — alguém gritou às suas costas.


Muita gente começou a resmungar, e uma mulher jovem, que Sana reconheceu como Kaisa, a filha do moleiro, bateu com a caneca na mesa e gritou:


— Volte com a música!


O trovador moveu timidamente seus hábeis dedos e voltou a tanger as cordas do alaúde. Os aldeões voltaram a beber e a conversar uns com os outros. Mas se achavam que Sana desistiria estavam enganados; caminhando ligeira por entre aquela legião de caras amarradas, ela cortou o ar fumacento e foi parar diante de balcão, nos fundos da sala.


— O que você quer? — perguntou Guda, o imenso dono da estalagem.


Sana mostrou o alforje.


— Trouxe tônicos.


— Eu ouvi da primeira vez — disse Guda, coçando o queixo. — O que você tem aí?


— Alguns frascos de tônico de Isvindrella, emulsão de Flor-da-Geada, para curar a febre… extrato de Broto de Maré, para as crianças pequenas. Quando não se tem leite e se alimenta os bebês com água de farinha, a maioria deles morre antes de completar um ano, se você não der um pouco de Raiz-da-Maré para eles — disse Sana.


— Eu sei, eu sei — resmungou Guda. — Tem alguma coisa para curar o mal-do-monte?


Guda se inclinou e abriu o colarinho, mostrando o pescoço e a parte de cima do peito. Sana arregalou os olhos, a pele do pobre homem tinha sido tomada por uma inflamação terrível, estava toda vermelha, rachada e descamada, como a pele abandonada de uma serpente.


— Hmmm, está bem vermelho. E imagino que deva doer bastante — ela refletiu.


— E coça também, coça até me deixar louco.


Sana tirou do alforje alguns frascos e os colocou sobre o balcão.


— Duas ou três bagas de zimbro fervidas e curadas por tempo suficiente dão uma infusão maravilhosa. Faça emplastros todos os dias até que a dor diminua e a vermelhidão suma e então estará curado — ela disse.


Guda apanhou um deles, levou-o até a altura dos olhos e o estudou. Estava prestes a fazer alguma pergunta, quando ouviu o barulho de algo cair nos fundos da estalagem.


— Esses meninos desgraçados! — ele berrou. — Querem me arruinar? Se perderem uma gota da minha cerveja, mato vocês! — ele se voltou para Sana, devolveu-lhe o frasco e completou: — Estou ocupado agora. Espere aí no canto e falo com você mais tarde.


Guda desapareceu através de uma porta, mas Sana ainda pôde ouvir sua voz trovejante.


— Eu vou cobrar isso de vocês! Vou cobrar caro!


E assim se vão minhas chances de voltar para casa cedo, pensou Sana, com amargura. Ela recolheu os frascos e foi se sentar num dos cantos da sala, perto dos forasteiros e dos marinheiros. Com o tempo, mantendo-se em silêncio, com o rosto oculto nas sombras do capuz, Sana se mesclou ao ambiente e os aldeões se esqueceram dela e voltaram a falar sobre coisas que iam desde a próxima colheita, que muitos esperavam que seria a mais magra dos últimos anos, até alcateias que tinham sido vistas nas redondezas e que, segundo alguns, tinham sido responsáveis por abater mais de uma vintena de bons animais na região, causando prejuízos terríveis.


— Ouvi dizer até que devoraram uma família inteira, perto de Sovelborg! — comentou um lavrador.


As pessoas ao redor dele praguejaram, apavoradas. Enquanto as conversas se desenrolavam, alguém pagou uma cerveja ao trovador e pediu uma música.


— A cantiga de Malling! Cante a cantiga de Malling!


Sob as sombras do capuz, Sana deu uma risadinha. A cantiga de Malling era uma das preferidas de Uli.


— É o que querem? A história de Malling, o Honrado? — perguntou o trovador, e a multidão confirmou, feliz. — Então assim será! — ele testou o alaúde, dedilhando as cordas com leveza, então ergueu a cabeça, respirou fundo, os olhos fechados, a face tranquila. — Há muito, muito tempo, na escarpada costa de Skodda, os pescadores costumavam vasculhar restos de naufrágios em busca de espólios. Foi assim que Malling, que não era pescador, mas um orgulhoso guerreiro, encontrou... — ele fez suspense e as pessoas se inclinaram para frente em suas cadeiras — uma sereia! Presa aos restos de um navio, ela morreria durante a maré baixa, ao romper da aurora, quando o primeiro raio de sol caísse sobre sua pele alva. Assim começa nossa história... Flautista! Você me acompanha? Vamos lá!


Sana aguçou os ouvidos.



Oh, tão linda era ela!

Uma verdadeira donzela.

Cabelos sedosos, com flores enfeitados,

E olhos profundos, pelas estrelas iluminados.


O bom Malling, que embora corsário, tinha um puro coração

Resgatou-a do naufrágio, prometendo salvação.

E depressa ele a levou, rumo às águas cristalinas,

Para seu garboso lar, entre as amigas Ondinas!


Então a sereia falou com voz pura,

E o coração de Malling se amainou com tamanha brandura:

“Três pedidos eu lhe concedo, por salvar-me da perdição,

“Esse é o costume das sereias, nossa antiga tradição”.


O belo Malling não se fez de rogado

E foi logo dizendo, todo apressado:

“Quero ser capaz de quebrar todo tipo de feitiço

“E de obrigar o ímpio a fazer o bem, esse é meu compromisso”.


“E o terceiro desejo?”

Quis saber a sereia, sem pestanejo.

“Que esses dons eu possa deixar para meu filho”,

Respondeu Malling, sem empecilho.


“Escolheu bem e por isso seus desejos hei de conceder,

Isso eu juro, por este belo alvorecer”.

Então Malling a devolveu à água, sentindo-se afortunado,

Mas a beleza dela era tão grande que o deixou apaixonado...



A cantiga seguiu contando como Malling, de coração partido, deixou a sereia ir embora e a encontrou anos mais tarde, juntando-se a ela no misterioso reino submerso, onde eternamente reinava Odamor, mas Sana deixou de acompanhar atentamente quando um dos funcionários de Guda, um menino magricela de olhos nervosos, se aproximou de sua mesa para servir os forasteiros que sentavam-se ao lado.


— Esse é um bom vinho! — disse um dos forasteiros. Era um rapaz muito jovem, e seu queixo não exibia nada além de uma rala penugem dourada. Seu rosto fino e alongado e os olhos que eram tão verdes quanto a relva das colinas no verão indicaram a Sana que ele devia estar bem longe de casa — Um bom vinho e uma boa estalagem, muito honesta. Escute, menino, com quem podemos falar aqui para conseguirmos transporte para as Ilhas? Somos mercadores, hein. Temos tecidos finos e coisas boas, muito boas. Queremos ir até Svenda ou mais além, até Farsund. Sabe onde fica?


O menino ficou desconfortável. Bastante compreensível, pensou Sana. Farsund era a maior cidade das Ilhas e lar do Clã da Baleia, o mais poderoso de todos os Clãs do Mar. Sana conhecia algumas histórias sobre eles. Ah, sim, conhecia. Os Clãs da Montanha tinham homens que dominavam os caminhos secretos e os vales escondidos entre os cumes brancos das Montanhas de Cobre. Moviam-se como fantasmas de caverna em caverna, segundo as lendas. E os Clãs do Mar? Bem, eles tinham seus corsários — os cavaleiros de sal, os montadores de navios. Homens forjados em tempestades e marés negras. Implacáveis. Impiedosos. E os marinheiros do Clã da Baleia? Comentava-se que eram os próprios filhos de Odamor, inigualáveis na arte da guerra e da navegação. Entre as ondas, não havia rivais à sua altura. Sussurrava-se em tabernas e em mercados que sua frota era imensa — mais de mil navios de combate. Os mares estremeciam onde quer que surgissem, e o terror os precedia, como uma nuvem negra de tormenta. Diziam que seus domínios se estendiam até as longínquas e relvadas costas dos reinos do sul e que nem mesmo os grandes galeões de Susax podiam enfrentá-los. Sana tinha visto em galeão uma vez, muito tempo atrás, numa época em que não passava de uma menina verde que não sabia nada da vida… Tinha sido um navio monstruoso, com amurada alta, um imenso castelo de proa, vários mastros e velas que podiam esconder o sol. Quando fechava os olhos, ainda era capaz de ver aquele monstro flutuando sobre as águas, contra toda a lógica; era como uma memória eterna, um pesadelo que se recusava a ir embora com a chagada da manhã. Como o mar suportava tanto peso? Como aquilo não afundava? Nunca descobrira. Agora, tantos invernos depois, Sana não sabia se o que as pessoas diziam era verdade. Os pequenos e ligeiros navios a remo dos Clãs do Mar seriam mesmo capazes de rivalizar com aqueles titãs de madeira e ferro de Susax? Talvez não. Mas uma coisa era certa: o Clã da Baleia era poderoso. E qualquer homem que se aventurasse até sua ilha sem ser convidado, como aquele jovem mercador queria fazer, não podia ser chamado de sábio.


— Acho que não é uma boa ideia, senhor — resmungou o menino.


— Por quê? Somos a primeira comitiva a se aventurar por essas bandas em muitos meses. Ninguém veio para cá desde o outono, com todas as passagens fechadas pela neve. Devem estar precisando de tecidos em Farsund, não? — o mercador alisou a jaqueta que o empregado de Guda usava. — Essas rudes peles podem ajudá-los a atravessar os invernos desta terra, mas não fazem nenhum bem a pessoas refinadas. Sabe como vivem as pessoas lá no sul? Em Susax, em Namerom ou no Império de Talland?


— Eu nunca saí de Stanmur, senhor... — o menino começou a dizer.


— Com sedas e tecidos finos, vestes nobres, que tocam a pele com suavidade, como água corrente. É disso que damas refinadas gostam — completou o mercador.


Perto deles, um dos marinheiros limpou a garganta e cuspiu no chão.


— Pode ficar com essa seda e esses tecidos finos, não temos utilidade para essas coisas aqui — ele resmungou. — E também não temos interesse em como são feitas as coisas no Sul ou em como vivem as pessoas em Susax e Namerom. Aqui é a Pérmia, feita de homens duros e de mulheres mais duras ainda — ele deu um tapa na mesa, abriu um sorriso selvagem e puxou uma mulher jovem para o colo. — As mulheres dos Clãs do Mar juntam-se aos seus homens nos navios e são capazes de brandir a espada e o machado. Elas não ficam encasteladas, cozendo, bordando e abrindo as pernas sobre camas quentes. Veja essa aqui, por exemplo. Eu a tomei em Skalbaer e desde então a trago comigo — ele segurou o queixo da mulher e virou o rosto dela para o mercador. — Veja, ela tem todos os dentes e sabe fazer muitas coisas com a boca. E sabe manejar um machado melhor do que você, eu diria. Diga ao mercador em quantas camas quentes e macias você já dormiu, mulher.


— Nenhuma — ela rosnou, quase como se fosse incapaz de falar apropriadamente.


— Está vendo? Quantos metros de tecido caro acha que vai conseguir fazer uma mulher dessas comprar? E se está achando que as bem-nascidas são diferentes, está enganado. Essa aqui não era uma qualquer... era filha de um Jalar. Sabe o que é um Jalar? O senhor de um clã que possui terras. Ela nasceu e cresceu numa família de sangue nobre. Você se lembra da sua família, mulher?


Ela fez que sim com a cabeça.


— Durante o saque, matei o pai dela e a tomei para mim, como recompensa. Meu Tesouro de Sal, meu direito, conforme os costumes antigos.


— Tesouro de Sal — murmuraram os outros marinheiros em uníssono.


O homem com a jovem no colo bebeu todo o conteúdo de sua caneca e fez sinal para que o funcionário de Guda lhe servisse mais cerveja.


— Por isso eu alerto, dê ouvidos ao que o menino diz. Não há nada para vocês nas Ilhas, nem em Svenda nem em Farsund. Nada a não ser a morte. O mar está estranho ultimamente, cheio de navios hostis. As batalhas entre os clãs não têm fim, forasteiro, e não existe passagem segura por essas águas. Pergunte a quem quiser e verá que não raro os ventos e as tempestades trazem à costa os restos de navios arruinados e os corpos inchados de homens que padeceram em combate sobre as ondas...


— Odamor os receba! — os marinheiros ergueram suas canecas em sincronia e beberam um trago de cerveja.


Sana percebeu que o trovador tinha terminado de cantar e retomado do início. Os versos ecoavam no teto baixo: Três pedidos eu lhe concedo, por salvar-me da perdição, esse é o costume das sereias, nossa antiga tradição.


— Está dizendo que percorremos toda essa distância, que nos aventuramos através de terras bravias, por nada?


Uma figura se levantou de uma mesa próxima e se aproximou dos mercadores. Enquanto coxeava com dificuldade, a luz incidiu sobre seu rosto e Sana viu que se tratava de Tovald, o velho bêbado trapaceiro. Conseguiu rastejar de volta sem ser notado, não é? Deve estar mesmo com sede.


— Qual é o seu nome, mercador? — perguntou Tovald.


— Mael, da bela terra de Novorath, no Reino de Andoll — respondeu o jovem com orgulho.


— Certo, certo. A bem da verdade, me admira que vocês tenham chegado até aqui, Mael de Andoll — disse Tovald. — A Pérmia está infestada de escravagistas, daqui até as Montanhas de Ferro. Vocês os viram, não viram? Terríveis cavaleiros com mantos negros, se deslocando em bandos e arrastando incontáveis escravos — uma sombra de medo atravessou o rosto de Mael. — Eles agem no verão e na primavera, quando a neve derrete e as pessoas se sentem seguras para saírem de casa. No verão passado chegaram notícias de um bando tão numeroso que muitos juravam se tratar de um exército, mas esses cavaleiros não são soldados... Ah, não. Eles não são leais aos Clãs da Montanha nem aos Clãs do Mar e muito menos aos Clãs da Planície. Eles evitam o litoral porque temem os navios, mas não poupam mais nada... vagam pelas terras atacando e saqueando pequenas aldeias, capturando peregrinos nas estradas e fazendo escravos. Eles levam os escravos para o oeste, para além de Firianost, onde os vendem às tribos bárbaras que vivem além dos limites dos mapas, é o que dizem — Tovald fez uma pausa e encarou os mercadores, os olhos brilhando de uma forma estranha sob as grossas sobrancelhas, o hálito azedo chegando até o nariz de Sana. — Vocês são quantos? Dez? Quinze? Vendidos como escravos, dariam um bom dinheiro. Sim, muito me admira que tenham chegado até aqui. Agora, como pagamento pela informação, sejam gentis e comprem a este velho sedento uma caneca de cerveja.


Naquele momento, Guda voltou dos fundos da estalagem e viu Tovald perto dos mercadores.


— Mas o que é isso?! Pare de molestar os clientes, seu patife ordinário! Você não vai beber mais uma gota aqui. Vá embora! Vá embora agora mesmo! — Guda deu a volta no balcão com uma velocidade aparentemente impossível para um homem daquele tamanho e correu atrás de Tovald, que, muito embora estivesse coxeando ao chegar à mesa, disparou através da sala e saiu porta afora como um raio, deixando o velho Guda vermelho e sem fôlego. — Ele ainda vai se ver comigo, isso eu prometo.


Guda voltou para o balcão e se sentou. Agora você não me escapa! Sana se levantou num salto e foi rumo aos fundos, mas parou no meio do caminho. Alguém abrira a porta da sala comum, deixando uma rajada de vento frio entrar. Guda se levantou, furioso.


— Tovald, seu vigarista pestilento, eu mato você aqui e agora e dou de comer aos porcos... — a voz dele morreu na garganta.


De súbito, os clientes ficaram em silêncio outra vez e o trovador desafinou de novo. Todos olharam para a porta, inclusive Sana. Ali, recortada contra a escuridão da noite não estava a figura do velho e infame Tovald, mas uma imagem estranha. Era pequena demais para ser um homem; tinha o tamanho de uma criança. Mas, se fosse mesmo, era diferente de todas as crianças que Sana tinha visto na vida. Sua pele era de cor azul-clara. O rosto redondo abrigava dois pequenos olhos rasgados, sem pupilas e muito negros, um nariz que era quase invisível e uma boca que não passava de uma linha escura, cortada por uma grande cicatriz. Não tinha queixo. Usava um belo gibão verde com imensos botões de latão dourado e um grande gorro pontudo de tecido verde que deixava à mostra duas orelhas finas como pontas de flecha. Vestia ainda pequenos culotes e boas botas de um amarelo brilhante.


Alheio aos olhares chocados dos clientes de Guda, o recém-chegado caminhou distraído rumo aos fundos da sala comum, as filigranas e os delicados arabescos florais que enfeitavam as mangas de seu gibão refulgindo como ouro, e parou diante de Sana. Oh, há até mesmo dragonas em seus ombros! Dragonas feitas de pequenas flores amarelas… Isso não é uma criança, definitivamente não. Sequer é humano. Por Odamor! Parece um… duende!


— Jovem senhora, você se importaria? — disse a criatura, fazendo uma mesura.


Sana o saudou e abriu caminho. Ele seguiu até o balcão e pigarreou.


— Boa-noite, senhor — disse ele.


Guda o encarou com um olhar capaz de azedar leite.


— Esta é realmente uma noite muito fria e ventosa, não? Nem parece que estamos na primavera. Não deve fazer muito tempo que os valorosos homens de Stanmur foram até os bosques para serrar o tronco de Briodas, não é mesmo? Imagino que tenham feito um belo festival. É... o tempo está estranho. Mas vocês têm um belo lugar aqui.


Guda rosnou. A única coisa que se ouvia era o crepitar das chamas na lareira.


— Um lindo lugar. Sinto cheiro de vinho quente, e há comida e um fogo para aquecer os pés cansados... isso é muito bom. O senhor é o proprietário? — falou o duende. — Oh, perdoe-me, eu sou Morian, ao seu dispor. Venho da bela terra de Cair-Elmen, no Reino Encantado...


— O que você quer? — Guda o cortou, sem a menor cerimônia.


— Bem, eu e minha comitiva estamos de passagem pela região e gostaríamos de um lugar quente e confortável para descansar — disse Morian.


— Não temos vagas — respondeu Guda, seco.


Sana ergueu uma sobrancelha, atenta ao desenrolar da conversa.


— Isso é uma lástima! Para nós, pelo menos — num esforço para parecer cortês, Morian deu uma risadinha, e Sana pôde ver seus minúsculos dentinhos serrilhados. — Mas o senhor tem certeza? Uma aldeia tão remota como essa não deve receber muitos visitantes, eu suponho. Ali há alguns forasteiros e alguns marinheiros, os orgulhosos montadores de navios dos Clãs do Mar, mas não acho que eles tenham ocupado todos os seus quartos.


— Não se refira a nós outra vez, pequeno, se quiser manter a cabeça sobre os ombros — disse o marinheiro, que ainda estava com a jovem no colo.


— Ora, meu caro, não busco confusão, isso é evidente... — foi logo dizendo Morian.


— Mas podemos dar conta disso facilmente! — alguém berrou. — Aliás, qual é o problema com nossa aldeia? Está querendo dizer que não é um lugar que valha a pena ser visitado?


De fato, não vale muito, refletiu Sana. Ela trincou os dentes, tensa; os ânimos estavam se aquecendo depressa.


— Não é nada disso, minha gente! Não há nada de errado com sua bela e acolhedora Stanmur! Até estou disposto a pernoitar aqui, coisa que não faria se houvesse algum problema — disse Morian. Sua voz oscila e falha, reparou Sana, deve estar fazendo muito esforço para soar conciliador e humilde. Morian encarou Guda novamente. — Senhor, eu e meus companheiros somos poucos e muito pequenos, como pode ver. Aceitaríamos pernoitar num quarto ou até mesmo na estrebaria, caso o senhor consentisse. O que queremos é um teto sobre a cabeça e paredes que nos protejam do vento e do frio da noite. Não precisa se preocupar, temos dinheiro... — ele enfiou a mão no bolso e voltou com uma bela e brilhante moeda de ouro. — Este não é ouro de fada, como nas lendas, posso assegurar. Somos comerciantes honestos. É ouro de Namerom. Vocês aceitam este, não é mesmo?


Sana se inclinou o máximo que sua cautela permitia e deu uma boa olhada na moeda. De fato, ela ostentava a imagem de uma imponente e orgulhosa águia de asas abertas. Era ouro namenoriano verdadeiro.


— Aceitamos — disse Guda, sombrio. O duende abriu um sorriso. — Mas não de vocês. Não gostamos da sua gente aqui.


O sorriso de Morian se dissipou rapidamente, como a neblina das manhãs de primavera, ao nascer do sol. Ele cerrou os punhos com força, deixando os nós dos dedos brancos, e começou a tremer e a oscilar para frente e para trás. Sana se encolheu, como se tivesse levado uma pancada no estômago. Guda, seu tolo! Seu imenso e monstruoso tolo! Por acaso não sabe que os pequeninos são geniosos e facilmente irritáveis? Agora você passou do ponto!


— É isso mesmo! — berrou alguém mais atrás. — Não queremos essas pequenas pessoas imundas em Stanmur!


Os aldeões e os marinheiros se empolgaram e começaram a lançar toda a sorte de insultos contra o miserável Morian. Sana recuou, assustada.


— Seres encantados são amaldiçoados! — gritou um homem.


— Eles trazem doença e morte! — vociferou uma mulher.


— Fazem as colheitas apodrecerem nos campos — acusou um lavrador. — E Odamor sabe como precisamos de uma boa colheita esse ano!


— Eles fazem os animais morrerem... — berrou um velho esturricado.

— E espantam os peixes! — completou um pescador.


— Eles dão má-sorte, afundam os navios e atraem os marinheiros para o fundo do mar! — gritou um dos marinheiros. — Já vi com meus próprios olhos.


— Sequestram bebês humanos, belos e gordos bebês humanos, e deixam troncos esculpidos ou essas abominações que eles geram no lugar — guinchou Kaisa. — Foi o que fizeram com o filho da minha irmã, sou testemunha!


— Trapaceiros, ladrões, assassinos! — rugiu Guda.


— Assassinos! — ecoou a multidão.


Assustada, Sana recuou e, sem querer, se chocou contra Mael, o mercador forasteiro, e o derrubou no chão. No meio da sala, Morian tremia, seus olhos vazios faiscando de malícia.


— Você e os seus não são bem-vindos aqui — disse Guda. — Vá embora e não volte nunca mais.


A sala explodiu em vaias e impropérios. Alguém atirou uma caneca vazia e ela foi aterrizar em cheio na testa de Morian, que perdeu o equilíbrio, deu dois passos para trás e caiu de costas. Os aldeões berraram de prazer e riram com vontade. Sana teve pena de Morian. Estava acostumada a ser alvo do desdém daquelas pessoas e sabia como aquilo podia ser doloroso. Ela se adiantou rapidamente e ofereceu a mão para que o duende se erguesse, mas ele a empurrou para longe, deu um berro agudo e correu para fora da estalagem, rápido como uma lebre. Os aldeões e os marinheiros ficaram rindo, satisfeitos com sua vitória acachapante.


— Isso foi errado! — censurou-os Sana. — Ele não pediu nada além de um lugar para dormir! E eu sei que nem todos os quartos estão ocupados. Guda, será que você se esqueceu das antigas leis da hospitalidade?


— Por acaso isso é da sua conta? — resmungou Guda, venenoso. — Aliás, o que você ainda está fazendo aqui?


— Ora, essa, estou esperando para negociar com você — Sana mostrou o alforje.


— Não vou comprar nada.


— Mas você mesmo pediu que eu esperasse...


— Já chega! Não vou comprar nada. Suma daqui você também, bruxa! — ele esbravejou.


Maldito! Poderia ter dito isso quando cheguei e teria me poupado de ficar aqui à toa, pensou Sana.


— Vá embora, bruxa! — gritou Kaisa.


— Amarre umas três pedras pesadas na cintura e pule na baía  — disse uma mulher, rindo-se de malícia.


Nas mesas, as pessoas não estavam apenas rindo de Morian e de como ele fora humilhado, mas também zombando de Sana, murmurando palavras maliciosas e cruéis. Ela correu os olhos por todas aquelas faces hostis e entre elas viu a de Jorud, amuado e constrangido. Ele era o único que não berrava insultos, preferindo esconder os olhos dentro de sua caneca.


— Esta noite vocês provocaram poderes que estão além de sua compreensão! — apontou um dedo acusador para Guda. — E você, seu imenso tolo, é o pior de todos, pois insuflou a multidão… Cedo ou tarde, coisas como essas acabam cobrando a conta! — ela deu as costas a Guda e dirigiu-se à saída.


Assim que deixou a sala comum e mergulhou no ar frio da noite, ela o viu. Morian estava apoiado na parede, curvado e respirando com dificuldade.


— Senhor — Sana não sabia bem o que dizer, mas achou que poderia confortá-lo —, não dê ouvidos ao que dizem. Eles não passam de bêbados. Falta-lhes sabedoria e bom-senso o suficiente para manter a língua atrás dos dentes — ela se aproximou lentamente de Morian. — Eu moro nas colinas, ao sul da aldeia. Não é uma casa muito grande e certamente não é adequada para alguém da sua estatura, mas há uma varanda pequena e um teto para proteger o senhor e seus companheiros do orvalho da noite...


Sana tocou o ombro de Morian com delicadeza, mas ele se assustou, deu um silvo de gelar o sangue e saiu correndo através da noite, rosnando de raiva. Num piscar de olhos tinha desaparecido.


— Aparentemente, nem todos os que sofrem querem ser consolados. Seja como for, espero que fique bem — murmurou Sana, infeliz.


Segurando firme o alforje, ela tomou a direção oposta à de Morian e foi embora. Às suas costas, além do fim da rua, além do cais, da baía e de suas águas escuras, no horizonte na borda do mundo, o Olho do Afogado havia desaparecido sob as ondas.

 
 
 

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